Daniel Blaufuks, John Wood and Paul Harrison e Rui Calçada Bastos representam três processos de investigação que, apesar de distintos entre si, se aproximam na forma como os objectos representados nas suas peças não são apenas referentes de si próprios mas extravasam a sua dimensão quotidiana, ainda que mantendo-se radicados na ideia de representação.

As imagens criadas por estes artistas operam uma ligeira deslocação daquilo que são objectos ou situações comuns, e nesta descontextualização abrem espaço a pequenas narrativas ficcionadas que partem das possibilidades visuais/ formais que estes objectos sugerem. Não perdendo de vista a verosimilhança face ao real, esta desaparece lenta e inevitavelmente sem que isso seja notado: os objectos e situações a que se reportam sofrem modificações, uma análise profunda de referências quotidianas dá azo a um potencial visual que nos reporta a dimensões de tempo e afecto. Estas são dependentes de estruturas diversas com que se deparam estes artistas nas suas lógicas de organização, baseadas na experiência pessoal, ou na observação e análise de situações encontradas. A permuta de valores a que assistimos nestas imagens procede de uma transformação pela História, pessoal ou colectiva, ficcionada ou simplesmente facciosa.
John Wood & Paul Harrison desenvolvem pequenas narrativas que partem da capacidade sugestiva do objecto, visual e formal, numa construção da ausência de representação do espaço, adicionando e subtraindo à importância do objecto em transformação a presença do cenário que, apesar de quase invisível, paira sobre a imagem em movimento.

Daniel Blaufuks trabalha sobre a cristalização da memória através de referências e vestígios encenados ou encontrados. Os objectos apresentados são ou tornam- se auto-biográficos e expõem a sua narrativa ao encontrarem na fotografia a representação do seu prolongamento enquanto História, sendo a sua veracidade uma incógnita.

Rui Calçada Bastos desenvolve uma relação performativa com a cidade, retirando desta ligação elementos de trabalho: o próprio artista e meio urbano aproximam-se numa rotina diária, um acompanhamento das metamorfoses simultâneas que ocorrem sob o olhar do artista, situações que sob a observação deste se transformam em eventos.

Vera Cortês Art Agency




Daniel Blaufuks

DANIEL BLAUFUKS
nº 37, Série Album, 2008
C-print, 100x80cm

O homem guardava tudo. Havia programas de teatro e bilhetes de avião, postais com imagens coloridas e cartas em envelopes com selos estrangeiros. Havia instantâneos e, claro, também algumas fotografias de maiores dimensões. Junto destes encontravam-se desenhos, alguns a lápis, outros a tinta e pena, e algumas aguarelas. Alguns não eram maus. Mas mesmo os menos bem feitos tinham sido feitos à mão e deviam ter algum valor, quer para quem os produziu ou para quem os recebeu.
Todos estes eram objectos que qualquer pessoa poderia guardar. Depois, havia listas de compras esbatidas, recibos do leite e da manteiga, horários do autocarro expirados há anos – itens que poucas pessoas guardariam por mais de uma semana ou duas, excepto se fossem dedutíveis nos impostos ou, mais provavelmente, por engano, esquecidos no bolso de um sobretudo que não é usado há muito tempo, e encontrá-los anos mais tarde proporciona um breve momento de prazer de uma quase auto-arqueologia. E depois havia ainda pequenos pedaços de papel rasgados com uma ou duas palavras ilegíveis gatafunhadas. Alguns eram suficientemente grandes para conservar toda ou parte de uma frase, outros eram tão pequenos que apenas restava uma sílaba incompreensível, como se fosse um meio eco ou uma saudação, possivelmente importante, interrompida pelo bater de uma porta. Tudo o que tivesse uma letra, uma impressão ou uma imagem fora conservado.
As sombras tangíveis de uma vida estavam por todo o lado, quase manchando as prateleiras, mesas, armários e secretárias sobre as quais pousavam, como que esperando a redescoberta ou a redenção, ou simplesmente companhia.1
John Wood and Paul Harrison

JOHN WOOD & PAUL HARRISON
100 boxes, 2009
1’40’’, Mini DV, Single channel

Poderia ter sido um acontecimento dramático.
Poderia ter sido:
Um acidente em trânsito
Um duplo a cair dentro de uma pilha de caixas
Uma cena de um filme de comédia onde todos os dias o protagonista enfia o pé numa caixa de papelão vazia e vai tropeçando sem parar.
Ou talvez tenham sido atiradas de um edifício ou de um veículo em movimento.
Ou talvez fosse uma pessoa a saltar de uma cadeira para cada caixa.
A mesma acção repetida cem vezes com o mesmo resultado.
A mesma acção repetida cem vezes com cem resultados ligeiramente diferentes.
De qualquer maneira, em termos da sua estrutura dramática, o vídeo é mais ou menos o mesmo no começo, meio e fim.
Rui Calçada Bastos

RUI CALÇADA BASTOS
Díptico. Sem Título, 2008
Impressão Inkjet
60 x 85 cm (cada)

Composta por uma combinação de fotografias de grande formato, este trabalho encapsula o interesse de longa data do artista no urbanismo e nas suas experimentações artísticas com a cidade global como um espaço itinerante, um estúdio sem lugar.




DANIEL BLAUFUKS

Daniel Blaufuks utiliza no seu trabalho a fotografia e o vídeo, apresentando o resultado através de livros, instalações e filmes. Os seus temas de predilecção são a ligação entre o tempo e o espaço e a representação da memória privada e pública.


RUI CALÇADA BASTOS

Rui Calçada Bastos (Lisboa,1971) vive e trabalha em Berlim. Após uma passagem pelo Atelier Livre (Lisboa) e cerca de dez anos de residência em Macau, frequentoua Escola de Belas Artes do Porto e de Lisboa (Pintura) e completou o curso de Escultura do Ar.Co.
Em 2002 foi artista residente na Cité International des Arts, Paris e no ano seguinte iniciou uma residência artística na Kunstlerhaus Bethanien, Berlim, como bolseiro Joao Hogan, a que se seguiu uma bolsa estatal da Neuer Berliner Kunstverein em 2004. Em 2005 foi nomeado para o Prémio União Latina e fundou com alguns artistas espanhóis residentes em Berlim INVALIDEN1, um espaço de apresentação de projectos de arte contemporânea. Distinguido com a bolsa Marcelino Botin em 2006, desenvolve novo trabalho em Xangai com o apoio de Fundação Oriente em 2008. Em 2011 estará como artista residente na Villa Aurora em Los Angeles. Rui Calçada Bastos expõe regularmente desde 1995.
JOHN WOOD & PAUL HARRISON

John Wood e Paul Harrison têm trabalhado em colaboração desde 1993, produzindo obras de vídeo com base em instalação e ecrã único.
Investigando a relação entre a figura humana e arquitectura, o seu trabalho desenvolve-se sob a forma de vídeos de curta duração (20 segundos - três minutos), com particular ênfase nas acções que formuladas e resolvidas num intervalo de tempo determinado.
Cada obra contém uma “lógica” interna, acção relacionada à duração. Dentro deste “mundo lógico” (espaço arquitectónico, o espaço da galeria, o escritório, o laboratório) a acção é permitida acontecer sem qualquer razão lógica, existe uma tensão entre o ambiente e o seu habitante, o jogo é incentivado e as influências são intencionalmente misturada - história da arte, comédia, educação via Open University, desenho, ciência ...
Muitas vezes filmados contra um fundo branco simples, as obras assemelham-se aos desenhos (ou diagramas) a partir dos quais são desenvolvidas.




  1. O homem guardava tudo de Thomas Mckean foi escrito para o livro O Arquivo, um álbum de textos de Daniel Blaufuks. Edições Vera Cortês Agência de Arte, lisboa, 2008.