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Num momento em que o planeta enfrenta alterações profundamente negativas provocadas pela pandemia Covid-19, o apoio sistémico, expressivo e forte ao sector cultural constitui-se da maior importância.

A experimentadesign toma assim a iniciativa de traduzir para português e de divulgar o manifesto de Hans Ulrich Obrist (HUO), publicado pela primeira vez a 5 de Maio de 2020, como forma de subscrever as propostas apresentadas neste documento e de, também, contribuir para a sua disseminação nos países de língua portuguesa.

19 Junho 2020


Manifesto
Hans Ulrich Obrist

O New New Deal:
Rumo a uma Nova Era de Imaginação Social


Recentemente deparei-me com um documento colectivo intitulado “The Grey Briefings” redigido pelo Special Circumstances Intelligence Unit, um grupo internacional composto por 90 futuristas, autores, designers, especialistas em tecnologia e decisores políticos. A pergunta que colocam é esta: “O que aconteceria à Europa e América do Norte se a pandemia de COVID-19 durasse um ano ou mais?”. Através do uso de software do MIT, revelam três cenários, sendo que todos implicam o fim do mundo como até agora o conhecemos.

Todos os cenários referem o desemprego em massa. O Primeiro Cenário é o Cenário Piramidal, onde os governos decretam medidas que beneficiam os mais ricos, resultando em desigualdade, pobreza e violência extremas. O Segundo Cenário é o Cenário Leviatã, no qual os governos expandem os seus poderes, utilizando-os para proferir objectivos sociais e benefícios colectivos. O terceiro é o Cenário da Aldeia, onde respostas estatais ineficazes e insustentáveis levam a uma fragmentação e à criação de soluções frágeis de apoio local Do It Yourself.

De acordo com o briefing, o cenário que acaba por melhor funcionar a longo-prazo é o Cenário Leviatã, onde todos fazem sacrifícios e são mobilizados a desenvolver soluções locais, criando experiências bottom-up com apoio governamental. Detém um foco em bens públicos e no bem-estar social, transformando a economia e criando fundações mais resilientes e sustentáveis. Este cenário leva à recuperação pós-crise e a um novo New Deal.

Alicerçados na agência Works Projects Administration, implementada na América em 1935, estes projectos seriam focados para redes públicas, serviços digitais, sistemas de saúde de vanguarda largamente acessíveis e iniciativas de energia, transporte e habitação ambientalmente conscientes. Os governos agiriam como guias e parceiros de implementação. O briefing termina com algumas questões pertinentes. Como seria um Renascimento pós-COVID19? Poderia uma crise de COVID a longo prazo provocar o estímulo necessário a uma nova era de imaginação social? Como podemos imaginar um mundo mais saudável, satisfatório e justo à luz dos desafios criados por esta “Grande Transição”?

De acordo com o briefing, na área da cultura o desafio reside na navegação de um equilíbrio delicado entre respeitar as preocupações das pessoas sobre a mudança; e encorajá-las a experimentar e permanecerem abertas a novas ideias. Como o presidente Franklin D. Roosevelt, autor do New Deal, escreveu em 1932: “O país precisa, e – a menos que eu esteja a confundir o seu temperamento – o país exige uma experimentação arrojada e persistente. É de senso-comum experimentar a aplicação de um método: se falhar, admiti-lo francamente e experimentar um outro. Mas, acima de tudo, tentar algo.

O futuro é muitas vezes construído a partir de fragmentos do passado. No final dos anos 1990, iniciei uma relação de amizade com Helen Levitt (1913 – 2009), a extraordinária fotógrafa de rua, realizadora e amiga de Walker Evans. Levitt relatou que Evans lhe tinha falado de como durante a Grande Depressão colaborara com Dorothea Lange, Gordon Parks, e muitos outros fotógrafos americanos no programa de fotografia da Farm Security Administration (FSA), que foi organizado no âmbito do New Deal em 1937 por Roy Stryker, produzindo 250,000 imagens de pobreza rural.

Levitt disse-me que se algum dia houvesse uma crise à escala global que abalasse as fundações da sociedade (tal como a que estamos a atravessar agora), deveríamos revisitar o legado do New Deal de Roosevelt e o que este fez pela cultura. Relembrando as suas palavras, procurei as notas onde escrevi o que ela transmitiu: como implementar um patronato governamental para a arte, democrático e descentralizado, e como ligar o artista à realidade social. Levitt também explicou que estes grandes projectos de apoio governamental para as artes tiveram um antecessor em 1926, quando o governo mexicano pagou a artistas para decorarem edifícios públicos com murais.

Nos Estados Unidos, o apoio governamental para as artes começou em 1933 como resultado directo da Grande Depressão, que se iniciou em 1929 e levou ao desemprego em massa. Como evidencia o historiador Robert C. Vitz, “a magnitude da crise forçou artistas a explorar novas formas de combater o seu isolamento tradicional, e eventualmente, através da organização de artistas e com o apoio de muitos programas governamentais para a arte, encontraram um novo sentido de comunidade e um novo papel na Sociedade Americana.” Vitz descreve como Morris Graves vagueou pelo Oeste a vender pinturas à beira da estrada, como Jackson Pollock atravessou o país à boleia e saltando para comboios de carga, como Arshile Gorky descreveu os anos da Depressão como sendo a época “mais sombria e devastadora” da sua vida, falando da “futilidade daquela pobreza paralisante para o artista”. Também nos fala de como Marsden Hartley escreveu que “a incerteza não contribui em nada para a paz de espírito necessária à criação de trabalho decente.

Os artistas perderam a maior parte do apoio filantrópico que tinham à medida que muitos dos eventos e feiras corporativas (incluindo a feira de arte da Society for Independent Artists apresentada no Grand Central Palace na cidade de Nova Iorque em 1931) deixaram de assegurar rendimentos. Houve uma iniciativa criada pela American Society of Painters, Sculptors and Gravers que, em 1935, sugeriu que os museus remunerassem os artistas pelo aluguer das peças que expunham. Apenas alguns museus, como o Whitney Museum of Art e o San Francisco Museum aderiram, sendo que a ideia acabou por falhar no que tocava à angariação de fundos. Tornou-se cada vez mais evidente que só uma iniciativa governamental de grande escala poderia trazer soluções.

Como explica a historiadora de arte Erica Beckh, houve uma importante reunião na residência de Edward Bruce em Washington D.C a 8 de Dezembro de 1933. Bruce era artista, advogado, empresário, editor e coleccionador. A sua mente generalista e espírito pragmático foram instrumentais para a criação de um programa para ajudar artistas. Juntou vários directores de museus de todo o país para uma reunião – onde também esteve Eleanor Roosevelt – que foi presidida pelo tio de Roosevelt, Frederic A. Delano. Aqui, foi delineado o primeiro programa federal de arte, o Public Works of Art Project (PWAP), com o objectivo de criar oportunidades de trabalho para artistas americanos através de encomendas, como por exemplo esculturas e murais para edifícios federais. Beckh resume:

Administrado pelo Procurement Division of the Treasury Department com fundos alocados pelo Federal Emergency Relief Administration, o PWAP integrava um programa federal de apoio de emergência. Era gerido por uma equipa central em Washington, com assistência de dezasseis comissões regionais de voluntariado, compostas por pessoal de museus e semelhantes. Os objectivos gerais do programa eram (1) estabelecer métodos democráticos de patronato governamental para a arte, (2) descentralizar a actividade artística pelo país, (3) promover a emergência de novos talentos desconhecidos (4) aumentar a apreciação do grande público pelas artes e (5) promover uma inter-relação mais próxima do artista com o seu contexto social.

O PWAP terminou em 1934 e foi substituído por dois programas independentes. O primeiro, também sob a direcção de Bruce, chamava-se Section of Painting and Sculpture (que mais tarde passou a chamar-se Section of Fine Art) e era uma agência permanente, agora desvinculada do Treasury Relief Fund. Esta agência comissariou artistas profissionais para decorar edifícios federais através de concursos públicos e anónimos. Tinha a ideia central de criar mais interesse social pelos artistas.

Como escreveu o artista/muralista George Biddle em 1940, “Esta contratação de mais de 600 artistas em cerca de 800 cidades americanas não custou nem mais um cêntimo aos contribuintes. Foi financiada através de fundos alocados para a construção de edifícios, aprovados pelo Congresso.” Biddle também notou que a “política de selecção através de concurso público, em conjunto com a descentralização (algo inerente, visto que o programa para os edifícios é ele também localizado quase inteiramente em cidades pequenas) é a meu ver o maior contributo e a influência mais saudável deste programa.

O segundo programa, sob a direcção de Holgar Cahill, chamava-se Federal Art Project (FAP). Com o objectivo de agregar as belas artes, arte pública, arte popular, artesanato, arte industrial e a arte folk, integrava a Work Progress Administration (WPA, depois denominada, em 1939, Works Projects Administration), uma agência do New Deal que empregou milhões de pessoas para executarem obras públicas, incluindo a construção de edifícios públicos, estradas e outras obras de grande escala. Um dos principais problemas da Section of Fine Art era que os artistas eram frequentemente pagos em várias prestações, e cada passo precisava de ser aprovado, levando muitas vezes a inibições e cedências na execução dos murais. Contudo, sob o FAP, todos os artistas participantes recebiam um salário, algo que necessitava de menos supervisão.

Nas palavras de Cahill, “É a função dos nossos tempos organizar grandes programas culturais democráticos e participativos para reparar a relação entre artista e público. O choque necessário para iniciar o programa foi a Grande Depressão, que deixou claro que sem a intervenção da comunidade organizada, as artes entrariam numa escuridão de onde poderiam não voltar a sair por várias gerações.

O FAP incluía:

  • Belas Artes: murais, escultura, pintura com cavalete, artes gráficas. Os murais tiveram um maior alcance, ou, nas palavras do muralista George Biddle, “Sempre que a arte do mural atingia a sua máxima expressão, havia também uma religião universal – isto é, uma fé ou propósito social que o artista partilhava com todas as classes sociais.
  • Arte Prática: pósteres, fotografia, arte e artesanato, dioramas, cenários. Esta secção incluía o Index of American Design, uma pesquisa enciclopédica sobre artes decorativas e arte folk nos EUA no século XIX. O projecto contou com mais de 18,000 representações de artesanato e têxteis norte-americanos.
  • Serviços Educativos: galerias e centros de arte, ensino artístico, pesquisa e informação. De particular importância foi a criação de mais de 100 centros comunitários que uniram gerações e tornaram a arte acessível a um público mais vasto.

Como escreveu George J. Mavigliano:

Os centros de arte comunitária ajudaram a desconstruir a noção de que a arte só pode ser apreciada por um conjunto limitado de pessoas. Um número crescente de pessoas começou a reconhecer valor na arte enquanto passatempo recreativo, o que estabeleceu uma ligação entre o artista profissional e o leigo, alargando o espectro artístico na comunidade. Ambos os programas foram criados com o propósito de introduzir o universo da arte a comunidades americanas dele distanciadas até então.

Mavigliano lembra-nos o discurso de Cahill no octogésimo aniversário do filósofo John Dewey, no qual Cahill enfatizou o valor atribuído por Dewey à fruição de arte no dia-a-dia e à ligação entre arte e sociedade. O filósofo acreditava que a arte não deveria ser vista como uma mera componente da educação estandardizada, mas sim como algo a experienciar através da participação.

Cahill escreve que a sua inspiração em Dewey deriva do “facto de que as ideias filosóficas têm a capacidade de ser transformadas em programas de acção… o pensamento do filósofo enquadra-se na experiência do dia-a-dia”. Cahill inspira-se no livro de Dewey, Art as Experience (1934), que consiste num manifesto pela democratização da arte e foi uma das principais influências por detrás do meu projecto expositivo Do It. Art as Experience descreve como “o crescimento do capitalismo tem tido uma enorme influência no desenvolvimento do museu enquanto casa digna para as obras de arte, e na promoção da ideia de que elas estão distanciadas da vida comum”. Dewey procurava recriar uma continuidade entre as formas refinadas e intensas da experiência que atribuía à obra de arte e os eventos quotidianos que dão forma à nossa experiência.

Como refere Jilian Russo, “Para Dewey, a filosofia requer aplicação prática, testes, e participantes activos para gerar mudança.” Foi precisamente isto que Cahill fez no FAP, que se tornou um laboratório alargado, prático e concreto em que aplicou e promoveu as ideias de Dewey.

Depois de Pearl Harbor e da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o Congresso, na altura bastante conservador, começou a opôr-se cada vez mais aos projectos artísticos do governo. Tinham sido cinco anos incrivelmente produtivos de patronato, o que originara milhares de obras de arte públicas. Milhões de pessoas tinham frequentado aulas de arte e artesanato abertas a todos em 107 centros comunitários. As competições anónimas, tanto regionais como nacionais, também tinham contribuído para criar um sentimento de comunidade. Certas exposições tinham sido visitadas por milhões de pessoas, algumas delas a contemplar obras de arte pela primeira vez.

As inúmeras iniciativas do programa permitiram que jovens artistas trabalhassem num ambiente de outro modo destituído, e estiveram na base de uma explosão de talento criativo nas décadas subsequentes. Stuart Davis, Marsden Hartley, Arshile Gorky, Philip Guston, William de Kooning, Lee Krasner (que afirmou que o WPA lhe salvara a vida), Jacob Lawrence, Norman Lewis, Alice Neel, Ad Reinhart e Mark Rothko beneficiaram do programa num momento crucial das suas carreiras emergentes, apesar das condições abismais.

Hoje, num momento de extrema crise no mundo, um período de preocupação profunda e precariedade para os artistas e para todos, um projecto de estímulo à criação artística na escala do WPA é uma necessidade urgente. A ideia é verdadeiramente relevante para o momento presente, tanto no que diz respeito ao reforço da economia como à ajuda e protecção dos artistas. Neste momento em particular, é importante que (como Helen Levitt me disse na conversa que originou este texto) as instituições culturais reflictam sobre como podem ir para além das suas paredes de modo a chegar a todas as pessoas. É o nosso papel colectivo, enquanto instituições públicas, apoiar os artistas e a cultura neste período. Quando as instituições culturais tornam as suas plataformas acessíveis aos artistas, muitos dos problemas mais terríveis do mundo podem ser explorados com honestidade e esperança. Se alguma vez houve um mundo necessitado de artistas, é o de hoje. No rescaldo do vírus, quando o mundo começar a reconstruir-se, as cidades têm de dar um passo em frente. As regiões têm de dar um passo em frente. Os países têm de dar um passo em frente. Os governos têm de ajudar a desenhar uma infraestrutura de mudança.

Ao pensar num novo New Deal, e em como o programa governamental FDR poderia ser uma ferramenta para os dias de hoje, é interessante consultar o livro The Green New Deal (2019) de Jeremy Rifkin. Nele, Rifkin propõe um plano urgente para enfrentar as alterações climáticas, transformar a economia e criar uma cultura verde, pós-combustíveis fósseis. Assim como a mobilização e criação de um programa federal em larga escala durante a Grande Depressão, que contou com o apoio de todos os partidos políticos e possibilitou a infraestrutura para a Segunda Revolução Industrial, o Green New Deal irá gerar toda a electricidade a partir de fontes renováveis, criar emprego e promover a investigação na nova economia verde.

É importante salientar que este é um momento muito diferente da década de 1930 e, como refere Rifkin, isto não pode ser uma réplica do New Deal do FDR. É, sim, um Green New Deal para o século XXI, centrado na recolha local de energias renováveis e gerido por infraestruturas regionais que se interligam além-fronteiras, como o wifi. No século XXI, cada estado, cidade e país do mundo pode ser relativamente auto-suficiente na criação e resiliência de energia verde. A infraestrutura da Revolução Industrial funciona de forma mais eficaz e eficiente quando é dimensionada transversalmente e liga uma infinidade de pequenos players. O Green New Deal clama por essa lateralidade na cooperação, de modo a caminhar para uma Terceira Revolução Industrial com custos marginais e uma pegada de carbono próximos do zero.

Esta é a primeira parte de um ensaio de duas partes. Escreverei um segundo capítulo sobre o Green New Deal e o mundo da arte que se debruçará sobre o projecto “Back to Earth” da Serpentine [Gallery].

Hans Ulrich Obrist



 





 
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