A VIDA ENTRE MUROS, POSSIVELMENTE

"Coloco um quadro na parede. Esqueço-me a seguir de que existe essa parede. Já não sei o que existe por detrás da parede, apenas sei que existe uma parede. Já não sei que esta parede é uma parede, já não sei o que é uma parede. Deixei de saber que no meu apartamento existem paredes, e que se não fossem as paredes, o apartamento não existiria. A parede já não é aquilo que delimita e define o espaço que habito, que separa a minha casa das outras, não é nada mais do que um suporte para o quadro. Mas também me esqueço do quadro, já não vejo o quadro, já não sei como olhar para ele. Sou obrigado a colocar um quadro na parede para me esquecer de que existe essa parede, mas ao esquecer a parede, esqueço-me do quadro também. Existem quadros porque existem paredes. Temos de nos esquecer de que existem paredes, e não encontramos outra solução senão a dos quadros.
Os quadros eliminam as paredes. Mas as paredes aniquilam os quadros. Daí que estamos continuamente em mudança, ou das paredes, ou então dos quadros. Estamos permanentemente a colocar quadros nas paredes, ou então estamos constantemente a mudar um quadro de uma parede para outra.
"
Georges Perec1

O que é que a disposição dos objectos, entendam-se domésticos, e a arquitectura têm em comum (ou não), ou então, onde é que os objectos e a arquitectura se encontram? Uma das respostas possíveis a esta questão é o interior. As peças elegidas para esta exposição são peças de interior, que definem, mapeiam, questionam, delineiam e articulam, de uma maneira ou outra, esse espaço, a sua superfície maleável, os seus limites, e que aportam para o seu estatuto privado, de articulação da subjectividade, numa reacção à vida moderna.

Os interiores, desde o século XIX, são espaços fabricados, produzidos por uma acção de “infolding”, termo utilizado por Walter Benjamin, que entende o interior como uma superfície mole e impressionável, um espaço erigido pelo habitante. Apesar de liquidados (na opinião de Benjamin) estes espaços
novecentistas ajudam-nos a entender a relação dos objectos com a arquitectura, de como os objectos podem ser uma reacção à arquitectura, e como a subjectividade, a privacidade e identidade social são suportados através de artefactos, reunidos neste domínio doméstico e íntimo.

O interior novecentista surge como um espaço à margem da produção e do trabalho. É com esta divisão de esferas que surge a possibilidade de emergência do interior doméstico. Benjamin alia esta divisão da casa/trabalho a um determinado tipo de experiência. A experiência longa (Erfahrung), ligada à tradição, à acumulação de conhecimento ao longo do tempo, é contrária à experiência instantânea (Erlebnisse) caracterizadora da dinâmica da vida moderna. A cidade aliena a experiência longa e é no interior doméstico que encontramos o seu último reduto.
Para Benjamin, esta experiência longa é passível de ser encontrada nos objectos encontrados e valorizados pelo habitante-coleccionador, que os identifica e conserva por despertarem, por libertarem memórias involuntárias para lá do objecto, da carapaça que os enclausura.2 Marcel Proust, na obra Em Busca do Tempo Perdido, fala-nos de uma crença celta que dita que as almas partidas se encontram presas em seres inferiores; em animais, plantas e objectos inanimados. No dia em que encontramos estes objectos perdidos, eles despertam, estremecem e interpelam-nos. Chamam por nós. Neste dia raro, o feitiço quebra-se e os objectos superam a morte, retornando para partilhar as nossas vidas.

Um interior despido de livros, de retratos, de estantes, de música, de um estore meio puxado, é um interior sem pistas, um mapa sem coordenadas. Uma casa vazia, uma arquitectura sem objectos é uma casa sem sombras, sem calor, sem indícios, sem impressões, sem presenças e sem relações. Sendo um palco sem acção, a ausência transforma-se numa presença negativa, talvez tão importante como o objecto que se escolhe exibir.

Nancy Dantas, Novembro 2010




Diogo Pimentão

DIOGO PIMENTÃO
Livro horizontal, 2009
Cartolina, papel impresso e madeira
3x32x22cm

Livro horizontal, constituído por cartolina, papel impresso e madeira, apresenta- se como um livro aberto, inidentificável, cujas páginas parecem ter sido rasgadas, derrogando a sua função e modo de leitura convencional. No que resta destas páginas, podemos ainda ler alguns caracteres, decifrar algumas palavras, mas nunca alcançar um texto original. O desenho, foco central de pesquisa do artista e actividade tão directa como mediada por superfícies ou acções, torna-se nesta peça objecto e lugar de uma respiração, de uma fala inteligível mas performativa no rasgar das páginas, dada a uma pluralidade de leituras devido ao seu carácter conceptual.
Diogo Pimentão

DIOGO PIMENTÃO
Quad (II), 2009
Aparas de lápis
Dimensões variáveis

Na sequência de uma residência artística na fábrica de lápis Viarco, onde o artista teve acesso a material de desenho dos mais variados formatos, surge Quad (II). Composta por aparas de lápis de cor, a peça forma um desenho no chão. Este desenho, de carácter objectual, dialoga com a sala e os seus elementos arquitectónicos, rompendo o espaço ao inserir nele uma espécie de dobra. Não se trata de um desenho tradicional, do domínio do traço, mas um desenho palpável e movível, formado pelos restos de utensílios que formarão desenhos futuros (são as aparas que restam da produção industrial dos lápis de cor).
José Seguro

JOÃO SEGURO
Casa da Fermentação #1, 2010
Mogno e dobradiças metálicas
Dimensões variáveis

Casa da Fermentação #1 é uma escultura composta por um biombo e um objecto que remete para uma secção de soalho, o qual desenha o movimento de uma porta a abrir sobre esta superfície. Ambos são elementos que se relacionam com o espaço interior da casa. O biombo remete para um determinado tipo de mobiliário que se deseja imperceptível e subtil na sua aplicação, sendo a função principal a de separar e ocultar. Na obra de João Seguro, estes elementos sofrem uma deslocalização ou oposição, onde lhes é retirada esta função primária. O objecto em si não é anulado, mas a sua vida dupla invocada.


Nicolás Robbio

NICOLÁS ROBBIO
Sem Título Untitled, 2009
Papel recortado, banco e retroprojector
Dimensões variáveis

A obra de Nicolás Robbio reflecte um espírito observador e sensível, cujas linhas depuradas e simplicidade de meios conferem uma síntese poética a imagens e objectos prosaicos. Nesta obra, o artista rasga sobre a parede uma janela imaterial, um ponto de luz, de fuga – de fuga para a imaginação. Servindo-se de um banco em madeira, um retroprojector e uma folha de papel recortada, Robbio torna o invisível visível, deslocando a bi-dimensionalidade do desenho para o volume.
Rui Valério

RUI VALÉRIO
120 min, 2009
Cassete áudio
220x365cm

Nesta obra, Rui Valério continua a sua exploração sobre o uso de formatos de música pré-gravada no contexto das artes visuais, despojando estes objectos da função habitual e abstraindo-os do seu contexto prático. Neste caso, o artista debruça-se sobre a cassete e a fita magnética que a compõe. Em 120 min, a fita magnética é utilizada para um outro tipo de gravação – a do desenho. Tendo como ponto de partida a caixa de plástico que aloja a fita, o artista traça sobre a parede um desenho cujo caminho labiríntico, quando percorrido, regressa ao ponto de origem. Este desenho é resultado de um cálculo da extensão original da fita, assim respeitando o objecto, não o submetendo a operações de corte ou manipulação, e expondo o que corresponderá, em termos métricos e neste formato, a 120 minutos de som gravado. Os efeitos da espécie de grelha construída, em combinação com o brilho e variantes de luz da fita magnética, produzem uma obra de leitura também ela cinética.




DIOGO PIMENTÃO

Diogo Pimentão (n. Lisboa, 1973) vive e trabalha em Château-Landon (FR). Em 1998 completou o curso de artes plásticas da Ar.Co em Lisboa.
Em 2004 foi seleccionado para o Prémio EDP, expondo um conjunto de desenhos no Centro Cultural de Belém. Entre as exposições individuais, destacam-se: Diferido, MARZ – Galeria, Lisboa (2009); Prefixo, Galeria Presença, Lisboa (2008) e Cousa, Fundação Carmona e Costa, Lisboa, da qual nasceu uma publicação pela Assírio & Alvim em 2006.
Das exposições colectivas recentes em que tem participado, salientamse: The Drawing Machines, Galerija Gregor Podnar, Berlim (2010); Solar Skill, Galeria Fluxia, Milão (2010); Au fil de l’oeuvre, La Galerie, Noisy-le-Sec (2010); Infinite Fold, Galerie Thaddaeus Ropac, Paris (2010); Museu Geológico, Lisboa (2009); Congrès à géométrie inverse, Grand Palais, Paris (2009); La Ligne, La Vitrine, Paris (2009); Lá Fora, Museu da Electricidade, Lisboa (2009); O contrato do desenhista, Plataforma Revolver, Lisboa (2008); La Promesse de l’Ecran, CAPC, Bordéus (2008); Maison de la Suisse (Le Corbusier), Cité Universitaire, Paris (2008); Trava-Línguas, Galeria Vera Cortês, Lisboa (2008); Antena 1, Fundação Eugénio de Almeida, Évora (2008).
O seu trabalho encontra-se representado nas colecções da Fundação de Serralves, Porto; Fundação PMLJ, Lisboa; Fundação EDP, Lisboa e Museu de Arte Contemporânea de Elvas/Colecção António Cachola, Elvas.
JOÃO SEGURO

João Seguro (n. 1979) vive e trabalha em Lisboa.
Licenciado em Pintura pela FBAUL (1998-2003), possui o Mestrado em Belas Artes da Chelsea College of Art & Design da University of the Arts London (2003-2004).
Em 2005, foi vencedor do prémio BES Revelação, Banco Espírito Santo/Museu de Serralves, Porto. Das suas exposições recentes destacam-se as individuais O desconhecido desconhecido, MARZ Galeria, Lisboa (2010); Six Degrees of Separation, MARZ – Galeria, Lisboa (2008); Out of the corner of the eye, Empty Cube, Lisboa (2007); Sur la passage de quelques persones à travers une assez courte unité de temps, C.G.P.B., Bordéus (2007); Centro de Artes Visuais, Coimbra (2007); 360º Avalanche, Lisboa20 Arte Contemporânea, Lisboa (2005) e as colectivas Quantos Queres, MARZ – Galeria, Lisboa (2010); Uma mesa e três cadeiras, Edifício ETIC, Lisboa (2009); 11ème Festival International Bandits-Mages, Château d’eau – Chateau d’art, Bourges (2009), 102-100 Galeria de Arte, Castelo Branco (2009), I can’t go on, I’ll go on (com Luís Paulo Costa), Sala Bébé, Lisboa (2008).
O seu trabalho encontra-se representado nas colecções do BESart, Lisboa e Fundação PLMJ, Lisboa.


NICOLÁS ROBBIO

Nicolás Robbio (n. Mar del Plata, Argentina, 1975) vive e trabalha em São Paulo. Com formação em artes plásticas, trabalha dentro da fotografia, pintura, desenho e instalação, lidando especialmente com espaços em branco, vazios geométricos, transparências e a interrupção da linearidade através de uma observação íntima do quotidiano.
Em 2007, foi artista residente na International Studio Program Bethanien Kunsthaus, Berlim, e em 2005, na Firstsite – Minories Art Gallery, Universidade de Essex, Colchester. Entre as exposições individuais recentes destacam-se: Se mueve pero no se hunde, Galeria Vermelho, São Paulo (2010), + que a mis ojos, Galerie Invaliden1, Berlim (2009); Partida, MARZ - Galeria, Lisboa (2009); Indirections, Pharos Centre for Contemporary Art, Nicosia (2008) e Por Puntos, Galería Nueveochenta, Bogotá (2008), entre outras. Recentemente, o trabalho de Robbio integrou várias exposições colectivas em Léon (2010), Ecatepec (2010), São Paulo, Langenhagen, Londres, Porto, San Juan e Lisboa. O seu trabalho encontra-se representado nas colecções do Museu de Serralves no Porto, Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo e Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA).
RUI VALÉRIO

Rui Valério nasceu em 1969 em Lisboa, onde vive e trabalha. Licenciado em 1997 no curso de Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, concluiu em 2008 a Tese de Mestrado em Artes Visuais/Intermédia na Universidade de Évora, onde lecciona actualmente como Assistente.
Das suas exposições individuais contam-se Volume II, MARZ Galeria, Lisboa (2009), LP no espaço Appleton Square, Lisboa (2007); Historia de La Musica Rock, CAMJAP-Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (2003) e Historia de la Musica Rock, Atelier Museu António Duarte, Caldas da Rainha (2002). Tem participado em diversas exposições colectivas desde 1993, das quais se destacam as mais recentes Filme e Vídeo na Colecção do CAM, CAMJAP-Fundação Calouste Gulbenkian (2010); On the edge, in the middle, Janalyn-Hanson White Gallery, Iowa (2008); Where are you from?, Faulconer Gallery, Grinnell, Iowa (2008); Central Europa 2019, Plataforma Revólver, Lisboa (2008); Densidade Relativa, CAMJAP-Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (2005).
O seu trabalho encontra-se representado na colecção do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão em Lisboa.




  1. Georges Perec, Species of Spaces and Other Pieces, “The Apartment”, Londres, Penguin, 2008, p. 39.
  2. vd. Charles Rice, The Emergence of the Interior, “Irrecoverable inhabitations”, Londres, Routledge, 2007, pp. 9-19.