CURADORIA DE JOSEPH GRIMA
O derradeiro defeito dos projectos – o de morrerem – remete-nos para os seus princípios: estavam condenados à partida porque alguns engenheiros loucos confundiram sonhos com realidade. [...] Sim, tens de reler o teu Hegel porque, como sabes, a realidade tecnológica não é racional e não vale a pena racionalizá-la depois do facto consumado.
Bruno Latour, ARAMIS or the love of Technology.
Desde o início dos tempos, os maiores sonhos, desafios e realizações do ser humano materializaram-se em obras de infraestrutura. Dos sistemas hidráulicos babilónicos aos arquipélagos criados por geo-engenharia no século XXI, as grandes obras de infraestrutura representam o auge da complexidade e realização arquitectónica – e muitas vezes, por virtude da sua esmagadora dimensão, tornam--se na expressão tangível do desenvolvimento, ambição e poderio de uma cultura. Canais, centrais eléctricas, fortificações, terras conquistadas à água por aterros, aquedutos, aceleradores de partículas, pontes suspensas, represas: as infraestruturas são vistas, não injustificadamente, como o registo das concretizações colectivas de uma sociedade, sendo ainda a referência histórica da visão dos seus líderes.
Sob o peso de tamanha e portentosa responsabilidade, a infraestrutura acaba inevitavelmente por imortalizar os mais catastróficos falhanços da sociedade. Estes descalabros estão bem presentes à nossa volta: o coitus interruptus infraestrutural do projecto de estimação de um político, interrompido por uma crise financeira; as infames cidades-fantasma da China ou os centros comerciais abandonados da América; os esqueletos de betão de hotéis inacabados espalhados das margens do Mar Vermelho; os 3,400 aeroportos construídos nos anos 70 e 80 por toda a antiga União Soviética e que estão hoje ao abandono, vítimas da obsessão da economia de mercado com a centralização.
No entanto, o fracasso pode ser tão revelador quanto o sucesso. Utilitas Interrupta propõe-se examinar de perto obras infraestruturais que já não satisfazem o pré-requisito Vitruviano da utilidade: projectos outrora celebrados e agora esquecidos, recordações de um optimismo longínquo (ou talvez nem tanto), que permanecem escondidas à vista de todos, apagadas como que por magia da consciência colectiva apesar das suas proporções abissais. Como cicatrizes indeléveis gravadas na paisagem, estas estruturas são os repositórios de histórias esquecidas de zelo e paixão, votadas ao esquecimento para depois serem postas de parte como amantes que já não conseguem agradar.
Esta exposição investiga dezassete case-studies recolhidos transversalmente em vários pontos no tempo e no espaço. A infraestrutura tornada obsoleta pela força indomável do progresso tecnológico; a infraestrutura da paranóia, por definição sem uso; a infraestrutura da vaidade, sem finalidade excepto enquanto prova da sua própria existência; a infraestrutura falida dos ideais dignos e das intenções por cumprir; a infraestrutura delapidada do infortúnio e da catástrofe; a infraestrutura do absurdo, do cómico e do trágico, histórias de gestos heróicos onde a cura é reconhecidamente pior que a doença.
Se a paisagem é o pano de fundo contra o qual se encena a epopeia da história, estas cicatrizes infraestruturais são uma forte e lúcida advertência de que a história tal como a conhecemos é apenas um dos inúmeros - e igualmente fascinantes - enredos possíveis.
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Joseph Grima
Curador Joseph Grima/
Curador Associado Elian Stefa/
Design Gráfico Neil Donnelly/
Com contribuições Alicja Dobrucka, Armin Linke, Bertin & CIE, Bogdan Stojanovic, Bruce Sterling,
Elian Stefa, Gaia Cambiaggi, Geoff Manaugh, Grégoire Basdevant, Haubitz+Zoche, Igor Kuznetsov, Igor Sharovatov, Ivan Kuryachiy, Jessica Russell, Minkoo Kang, Nicola Twilley, Noah Sheldon, Sergey Kulikov, Ulrich Pohlmann/
Fotografia: © 2011, EXD'11/ Rodrigo Peixoto